Sobre tornar-se negro

Ninguém nasce negro: torna-se negro. Eu não nasci negro. Até na minha certidão de nascimento consta na minha classificação de cor: pardo. Eu me tornei negro. Na verdade, ainda acredito que estou me tornando.

Ainda tentando justificar a analogia "beauvoiriana" de um dos textos mais primorosos sobre o feminismo, acredito que comecei a me tornar negro aos seis anos de idade, que foi quando eu me percebi negro no mundo.

Lembro-me dramaticamente de um Gustavinho sentado de pernas cruzadas no degrau de um pátio com sua lancheirinha vermelha de algum personagem de desenho infantil. O garotinho abriu sua Ruffles, sabor tradicional, e sua garrafinha pet de refrigerante que sua mãe comprou e preparou para o momento do recreio. Este mesmo garoto foi observando todos os alunos descerem as escadas com aquela euforia, desconfiança e descoberta de primeiro dia de aula. Este garoto não reconheceu ninguém parecido com seus primos, com seus colegas de bairro e nem consigo mesmo. Ali foi a mais emblemática noção que eu tive que eu era negro, o que isso começaria a representar e como essa marca trazida por genes honrados dos meus pais e avós desdobraria em minha personalidade, destino e jeito de ser.

Com poucos e intensos vinte e sete anos e poucos meses de vida tive muitas oportunidades e com elas vieram algumas escolhas. Estas escolhas em conjunto com uma personalidade (por vezes irritantemente) crítica me proporcionaram o privilégio (prefiro acreditar assim) de conseguir transitar por muitos meios. Estes meios que vão do seio familiar, amigos que escolhi e me escolheram e das tais quarenta e quatro horas semanais são muito diversos. E poucas coisas me fascinam mais do que a diversidade, as mudanças e a guerra à mesmice.

Este trânsito nesses meios todos construiu um ser humano que naturalmente consegue identificar e se desvencilhar com parcimônia, elegância (não aquela de Gloria Kalil, mas aquela da simplicidade da vida) e naturalidade ao racismo e ao preconceito. Isso se constrói e se desenvolve. Longe de ser um militante assíduo do movimento negro, faço do meu jeito, com mais silêncio e comedimento. Sei reconhecer que o barulho e o dedo na ferida (se bem feito) é o que aproxima os abismos raciais do mundo em que vivo.

Quando me encontrei neste cenário e entendi a tarefa de cumprir, como posso, o meu papel de negro brasileiro acredito que comecei a me tornar negro, o que pra mim extrapola as afinidades com a nossa cultura, origem e música como forma de empoderamento. Tornar-se negro para mim é trazer a luz a reflexão de sua condição social e a empatia com todos os seus e semelhantes.

Os negros que mais admiro, me inspiram e que eu aspiro ser são dotados de sensibilidade. Lutam e relutam mais do que quaisquer outros contra os preconceitos que todo mundo possui, rechaçam as homofobias, xenofobias e demais fobias como ninguém. Se reconhecem. Reluzem. Inspiram. Tornam-se e com isso transformam!

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